Escrito de Bernardo Soares. Sem data, possivelmente escrito em 1929.
Já está disponível a tradução para o espanhol deste trecho. Ler aqui.
Boa leitura!
Pedi tão pouco à vida e esse mesmo pouco a vida me negou. Uma réstia de parte do sol, um campo próximo, um bocado de sossego com um bocado de pão, não me pesar muito o conhecer que existo, o não exigir nada dos outros nem exigirem eles nada de mim. Isto mesmo me foi negado, como quem nega a esmola não por falta de boa alma, mas para não ter que desabotoar o casaco. Escrevo, triste, no meu quarto quieto, sozinho como sempre tenho sido, sozinho como sempre serei. E penso se na minha voz, aparentemente tão pouca coisa, não encarna a substância de milhares de vozes, a fome de dizerem-se de milhares de vidas, a paciência de milhões de almas, submissas como a minha ao destino quotidiano, ao sonho inútil, à esperança sem vestígios. Nestes momentos meu coração pulsa mais alto por minha consciência dele. Vivo mais porque vivo maior. Sinto na minha pessoa uma força religiosa, uma espécie de oração, uma semelhança de clamor. Mas a reação contra mim desce-me da inteligência… Vejo-me no quarto andar alto da Rua dos Douradores; sinto-me com sono; olho, sobre o papel meio escrito, a minha mão sem beleza e o cigarro barato que a esquerda estende sobre o mata-borrão gasto. Aqui, eu, neste quarto andar, a interpelar a vida! a dizer o que as almas sentem! a fazer prosa como os génios e os célebres! Aqui, eu, assim!…
Nestes momentos meu coração pulsa mais alto por minha consciência dele.
Bernardo Soares é um dos heterónimos de Fernando Pessoa, Livro do Desassossego foi assinado por ele mesmo, a quem Pessoa descreve como um semi-heterónimo. «[Bernardo Soares] É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela».
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Una respuesta a “194: Livro do Desassossego – Fernando Pessoa”
[…] Ler o trecho «194» em português. […]
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