Mitologia andina
No início só a fumaça[1] estava presente e a escuridão era total, desmerecedora. Da fumaça surgiu o Hanan Patsa com seus moradores celestiais: o Tayta Inti com sua cabeleira dourada; a Mama Killa, sua esposa, a de o sorriso de prata; e suas filhas, as Quyllur, alegres em seu resplendor. Também estava o terrível Illapa, quem reluz e ruge; o colérico Shukukuy, a ventania violenta; a jocosa Tamya; e o altivo Turmanyay, sempre orgulhoso de suas esplêndidas cores.
Da fumaça apareceu o Kay Patsa. Neste lugar moravam as grandes Qucha, que seriam as primeiras paqarinas dos homens; os altos Urqu ou Hirka, onde iriam morar os Awki; os Rahu com suas albinas vestimentas, de onde o Yaku, fonte essencial da vida, brota incontrolável. Todos eles nasceram da fumaça. Mas não era tudo, faltava mais indubitavelmente.
Por último, surgiu o Uran Patsa com seus incríveis habitantes. Onde também mora o Yaku, mas este é diferente, este ferve e consome tudo; os Kuru que destroem quando tocam; a Sachamama, a grande serpente de dois cabeças, com seus filhos os amarus; os pequenos Ichik-Ullqu com seus tambores mágicos, que pouco tempo depois conseguiriam licença para visitar o Kay Patsa ocasionalmente. Finalmente, apareceu uma raça de gigantes vermelhos e colossais, de enormes colmilhos, eram os Wari, os filhos do fogo que domina as entranhas do Uran Patsa.
Houve uma época de conflito entre o Hanan Patsa e o Kay Patsa. Seria o primeiro Patsa Kuti, quando a harmonia é perdida e o caos reina. Em consequência, um terremoto estrondoso e devastador partiu a cadeia de montanhas dos Andes em dois, formando-se o vale sagrado que hoje conhecemos como Callejón de Huaylas. Quando tudo se calmou novamente, pelas fissuras que se formaram nos Hirkas, os Waris curiosos e surpreendidos, subiram ao Kay Patsa e encantaram-se com uma região maravilhosa, rodeada por altíssimas cordilheiras, uma delas cheia de branquíssimos nevados e a outra de rochas firmes e escuras. Os Waris estavam tão contentes que decidiram ficar nesse lugar mágico.
Certo tempo depois, do Hanan Patsa caiu a Tamya como nunca antes, chovia dia e noite intensamente. Choveu tanto que o vale sagrado onde moravam os Waris inundou-se por completo. Houve huaicos, avalanches e aluviões; foi um verdadeiro dilúvio. Devido a este novo Patsa Kuti, os colossais Waris, para salvar-se, tiveram que emigrar muito medrosos e apurados para o oriente — para as zonas transandinas de Chavín, Marañón e Huacrachuco. Não sabiam que estavam abandonando a região protegida pelas mágicas Cordillera Blanca e Cordillera Negra.
Quando os Waris deixaram o vale sagrado de Huaylas, o lugar de sua aparição neste mundo, degeneraram tremendamente. Viram espantados como alguns se convertiam em plantas de todo tipo: árvores, arbustos e achupallas. Outros Waris, berrando de impotência, transformaram-se em animais voadores, rasteiros e desses que correm. Finalmente, quando só restava um grupo deles, converteram-se em homens de carne e osso. Aqueles, chamados Nunas, estavam desnudos e sentiram frio por primeira vez. Compreendendo sua situação, humildemente, os homens prepararam-se para povoar o Kay Patsa, a terra, em harmonia com os seres que a habitavam, plantas e animais; pois lembravam que todos eram irmãos, filhos da Patsa Mama, frutos da mesma árvore, descendentes dos fabulosos Waris.
[1] A fumaça representa o caos como elemento contrário à harmonia, estes dois conceitos, caos e harmonia são ciclicamente alterados e os deuses andinos são divindades que ordenam o caos.
Glossário
Achupalla: do quíchua, planta de América do Sul, da família das Bromeliáceas; de talo grosso, escamoso e retorcido; folhas alternas, que embainham o talo, e espinhosas pelas beiras; flores em espiga e o fruto é o abacaxi. Uma bebida refrescante pode-se realizar de seus talos. |
Amaru: serpente. |
Awki: espírito que mora nas colinas e as protege. Escrito como «Auqui» em espanhol. |
Cultura Wari: civilização andina que cobriu uma grande parte do território peruano. Também conhecida como «Huari» ou «Guari». |
Hanan Patsa: hanan ‘arriba’, patsa ‘mundo’. O céu, o mundo de arriba. |
Huaico: do quíchua wayqu, massa enorme de lodo e penhas que as chuvas torrenciais desprendem das alturas dos Andes e que, quando caem nos rios, causam seu desbordamento. |
Ichik-Ullqu: duende, elfo (ichik ‘pequeno’, ullqu ‘homem’). |
Illapa: raio. |
Kay Patsa: kay ‘este’, patsa ‘mundo’. |
Kuru: verme. |
Mama Killa: mama ‘mãe’, killa ‘lua’. Escrito como «Mama Quilla» em espanhol. |
Nuna: pessoa, homem (mulher e varão). Não confunda com o significado desta mesma palavra em outras variantes da língua quíchua, em Cuzco, por exemplo, nuna significa ‘espírito’. Em algumas zonas de Áncash runa também significa ‘pessoa’, como na maioria de variantes do quíchua. |
Paqarina: lugar onde um nasce, fonte de origem. Escrito como «pakarina» em espanhol. |
Patsa Kuti: tempos em que reina o caos ou a harmonia. A harmonia e o caos são conceitos que se intercambiam (literalmente: patsa ‘tempo’, kuti ‘repetitivo’). |
Patsa Mama: patsa ‘terra’, mama ‘mãe’. |
Qucha: laguna ou lago. Escrito como «Cocha» em espanhol. |
Quyllur: estrela. Escrito como «Koyllu» em espanhol. |
Rahu: gelo. Escrito como «Raju» em espanhol. |
Sachamama: também descrita como uma boa gigante. Parte da cultura amazônica. |
Shukukuy: furação. Também conhecido como «Shukukí». |
Tamya: chuva. |
Tayta Inti: tayta ‘pai’, inti ‘sol’. Escrito como «Taita Inti» em espanhol. |
Turmanyay: arco-íris. Também escrito como «Turmanyé» devido a seu jeito de pronúncia em algumas regiões de Áncash. |
Uran Patsa: uran ‘abaixo’, patsa ‘mundo’. O mundo de abaixo, debaixo de este mundo. |
Urqu e Hirka: a colina, palavras sinônimas, o termo Hirka é usado exclusivamente em Áncash, e Urqu é uma palavra usada em diferentes variantes do quíchua. Urqu é escrito como «Orko» em espanhol. |
Yaku: água. Escrito como «Yacu» em espanhol. |
Referências
Mejía, J. S. (2016). Tradiciones ancashinas. Huarás: Killa Editorial.
Ministerio de Educación. (2005). Yachakuqkunapa Shimi Qichwa. Lima: Corporación Gráfica Navarrete S.A.
REAL ACADEMIA ESPAÑOLA. Diccionario de la lengua española, 23.ª ed., [versión 23.3 en línea]. <https://dle.rae.es> [09 de 09 de 2020].

Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-CompartilhaIgual 4.0 Internacional. «A criação do mundo», um mito adaptado e traduzido por Pablo Alejos Flores.